domingo, 5 de fevereiro de 2017

Conto de Natal - Rubem Braga


       Sem dizer uma palavra, o homem deixou a estrada andou alguns metros no pasto e se deteve um instante diante da cerca de arame farpado. A mulher seguiu-o sem compreender, puxando pela mão o menino de seis anos.
     — Que é?
     O homem apontou uma árvore do outro lado da cerca. Curvou-se, afastou dois fios de arame e passou. O menino preferiu passar deitado, mas uma ponta de arame o segurou pela camisa. O pai agachou-se zangado:
    — Porcaria...
     Tirou o espinho de arame da camisinha de algodão e o moleque escorregou para o outro lado. Agora era preciso passar a mulher. O homem olhou-a um momento do outro lado da cerca e procurou depois com os olhos um lugar em que houvesse um arame arrebentado ou dois fios mais afastados.
     — Péra aí...
     Andou para um lado e outro e afinal chamou a mulher. Ela foi devagar, o suor correndo pela cara mulata, os passos lerdos sob a enorme barriga de 8 ou 9 meses.
     — Vamos ver aqui...
     Com esforço ele afrouxou o arame do meio e puxou-o para cima.
     Com o dedo grande do pé fez descer bastante o de baixo.
     Ela curvou-se e fez um esforço para erguer a perna direita e passá-la para o outro lado da cerca. Mas caiu sentada num torrão de cupim!
    — Mulher!
     Passando os braços para o outro lado da cerca o homem ajudou-a a levantar-se. Depois passou a mão pela testa e pelo cabelo empapado de suor.            
     — Péra aí...
     Arranjou afinal um lugar melhor, e a mulher passou de quatro, com dificuldade. Caminharam até a árvore, a única que havia no pasto, e sentaram-se no chão, à sombra, calados.
    O sol ardia sobre o pasto maltratado e secava os lameirões da estrada torta. O calor abafava, e não havia nem um sopro de brisa para mexer uma folha.
    De tardinha seguiram caminho, e ele calculou que deviam faltar umas duas léguas e meia para a fazenda da Boa Vista quando ela disse que não aguentava mais andar. E pensou em voltar até o sítio de «seu» Anacleto.
    — Não...
    Ficaram parados os três, sem saber o que fazer, quando começaram a cair uns pingos grossos de chuva. O menino choramingava.
    — Eh, mulher...
    Ela não podia andar e passava a mão pela barriga enorme. Ouviram então o guincho de um carro de bois.
    — Oh, graças a Deus...
    Às 7 horas da noite, chegaram com os trapos encharcados de chuva a uma fazendinha. O temporal pegou-os na estrada e entre os trovões e relâmpagos a mulher dava gritos de dor.
    — Vai ser hoje, Faustino, Deus me acuda, vai ser hoje.
     O carreiro morava numa casinha de sapé, do outro lado da várzea. A casa do fazendeiro estava fechada, pois o capitão tinha ido para a cidade há dois dias.
     — Eu acho que o jeito...
    O carreiro apontou a estrebaria. A pequena família se arranjou lá de qualquer jeito junto de uma vaca e um burro.
    No dia seguinte de manhã o carreiro voltou.     Disse que tinha ido pedir uma ajuda de noite na casa de “siá” Tomásia, mas “siá” Tomásia tinha ido à festa na Fazenda de Santo Antônio. E ele não tinha nem querosene para uma lamparina, mesmo se tivesse não sabia ajudar nada. Trazia quatro broas velhas e uma lata com café.
     Faustino agradeceu a boa-vontade. O menino tinha nascido. O carreiro deu uma espiada, mas não se via nem a cara do bichinho que estava embrulhado nuns trapos sobre um monte de capim cortado, ao lado da mãe adormecida.
    — Eu de lá ouvi os gritos. Ô Natal desgraçado!
    — Natal?
   Com a pergunta de Faustino a mulher acordou.
    — Olhe, mulher, hoje é dia de Natal. Eu nem me lembrava...
     Ela fez um sinal com a cabeça: sabia. Faustino de repente riu. Há muitos dias não ria, desde que tivera a questão com o Coronel Desidério que acabara mandando embora ele e mais dois colonos. Riu muito, mostrando os dentes pretos de fumo:
    — Eh, mulher, então “vâmo” botar o nome de Jesus Cristo!
    A mulher não achou graça. Fez uma careta e penosamente voltou a cabeça para um lado, cerrando os olhos. O menino de seis anos tentava comer a broa dura e estava mexendo no embrulho de trapos:
    — Eh, pai, vem vê...
    — Uai! Péra aí...
    O menino Jesus Cristo estava morto.  
      Texto extraído do livro "Nós e o Natal", Artes Gráficas Gomes de Souza - Rio de Janeiro, 1964, pág. 39.





1. Identifique no conto  de Rubem Braga – Conto de Natal -, os seguintes elementos da narrativa:
a. personagens;
b. espaço em que se passa a ação;
c. tempo em que a ação se passa;
d. ações/enredo;
e. desfecho.

2. Identifique, ainda no conto de Rubem Braga, os momentos da narrativa:
a. situação inicial;
b. conflito;
c. clímax;
d. desfecho.

3. Não é usual um conto de natal terminar da forma como o conto de Rubem Braga. O autor demonstrou a desumanidade e a crueldade da sociedade.
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